quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

À mesa com... um portista especial

Início do milénio, Braga. Numa das minhas (então ainda) frequentes visitas à cidade dos arcebispos - terra na qual assisti ao meu primeiro jogo ao vivo do FC Porto - tive oportunidade de travar conhecimento com aquele que viria a ser "um portista especial".

Mais de uma década depois achei que fazia todo o sentido retomar contato convidando este portista para uma cerveja, duas de conversa e muito tremoço. O resultado é um testemunho que não podia deixar de partilhar convosco.

Por razões que vos serão óbvias umas linhas mais abaixo decidimos dar-lhe um nome fictício. Ainda que este tremoço possa ser indigesto para muitos (para 5.999.999, vá, para ser mais exato) o nome é a única coisa fictícia nesta conversa.

Cá vai…

jb: Cordeiro.
Cordeiro: jb.

jb: Cordeiro. Suponho que já sabes o que te traz ao Café das Antas.
C: Tenho uma ideia, sim. (risos)

jb: Apresenta-te lá à malta.
C: Cordeiro… 32 anos… empresário… Braga.

jb: Sim senhor, sintético. No meu novo emprego pediram-me um texto a falar de mim em 40 palavras e não consigo baixar das 97. Tu com 4 despachaste o assunto. Chapeau!

jb: Bom, vamos ao que interessa. És a única pessoa que conheço que mudou de clube. Quando é que isso aconteceu?
C: Foi na época de 2000/2001… tinha eu os meus 21 ou 22 anos.

jb: Ainda a tempo duma Champions e duas UEFAs...
C: O que só vem comprovar que tomei a decisão certa. Estava farto de títulos europeus a preto e branco.

jb: Sabes explicar o porquê dessa mudança? Como é que isso aconteceu?
C: Foi algo motivado por aquilo que, considerei na altura, ser um perfeito disparate de grande parte da massa associativa do Benfica. Algo que me revoltou e custou a digerir. Sempre fui um confesso admirador de um ex-presidente dos encarnados. Refiro-me mais concretamente ao Dr João Vale e Azevedo…

jb (interrompe com ar de gozo): Admirador do Vale e Azevedo?!
C: Mas estás aqui para me entrevistar ou para me escarnecer? Para bitaites clubísticos já me chegam os Fedorentos...

jb: Vá, continua lá...
C: Dizia eu que a forma como a sucessão na presidência do Benfica se processou nessa altura deixou bem evidente que a maior parte dos benfiquistas não respeita um dos seus, e mais importante que isso, nos maus momentos é capaz de virar as costas ao seu líder. Quando a intenção de voto da maioria se altera porque um certo indivíduo que tem uma estátua em frente ao estádio surge associado a um jantar de campanha do opositor da altura (Manuel Vilarinho)…julgo que está tudo dito. É revelador do total desequilíbrio mental de determinados associados. E mais, recordo que ainda quando Vale e Azevedo era presidente do Benfica e foi detido para interrogatório…já aí os benfiquistas falharam. Não se colocaram ao lado do seu presidente num momento tão difícil, tão complicado… saltaram do barco. O sr Jorge Nuno Pinto da Costa (presidente do FC Porto) passou por algo semelhante… e aí os portistas tiveram um comportamento exemplar. Nunca deixaram de o apoiar. É esse o espírito… devemos estar sempre presentes, dar sempre o apoio a um dos nossos… não só nos bons, mas sobretudo nos momentos mais conturbados. Os benfiquistas nesse aspecto deixam muito a desejar.

jb: E em que momento exato disseste para ti mesmo “já não sou do Benfica, sou FC Porto”?
C: Não foi uma decisão que tomei assim de ânimo leve…não acordei a dizer para comigo “a partir de hoje vou ser do Porto”. Não, nada disso. O Benfica, para mim, morreu a partir do momento em que José Mourinho (na altura treinador dos encarnados) foi “convidado” a sair do clube. Já com Manuel Vilarinho como presidente, o técnico foi escorraçado que nem um animal, por ter sido uma escolha do anterior presidente. Fizeram de tudo para que Mourinho saísse pelo próprio pé… todo o tipo de jogadas baixas e sujas… desde alterar o planeamento de estágios da equipa em vésperas de jogos importantes e sem consultarem o treinador, até apresentarem reforços para os quais Mourinho nunca dera o seu aval.
Portanto, o Benfica para mim, depois da saída de Vale e Azevedo, ficou ligado à máquina e “morreu” quando Mourinho deixou o clube… essa foi a gota de água que fez transbordar o copo. Comecei então a torcer pelo sucesso daquele que é hoje considerado como o melhor do mundo… quer quando esteve a orientar a União de Leiria como quando depois assinou pelo Porto. Por lá ficou o tempo suficiente para me aperceber um dia que já não vibrava somente com os êxitos pessoais de José Mourinho, mas também com as vitórias do Porto. Foi assim que descobri que era portista.

jb: Ainda te lembras de como era ser adepto do Benfica?
C: Já faz parte do passado…

jb: Mas que diabo te passou pela cabeça para teres sido inicialmente adepto desse clube?
C: Pressões familiares… quando se cresce num ambiente familiar marcadamente encarnado, é perfeitamente normal que, enquanto crianças, a paixão clubista evolua de acordo com ambiente que nos rodeia. Digamos que somos completamente “envenenados” enquanto procuramos a nossa identidade.

jb: Qual é agora o sentimento que tens em relação ao Benfica? É um adversário como os outros ou há uma abordagem diferente por já teres sido adepto?
C: É um sentimento de desprezo… não lhe dou qualquer valor, porque o verdadeiro Benfica já foi “chão que deu uvas”. Hoje em dia o Benfica não é uma ameaça, não é o gigante que já foi em tempos…tornou-se num clube banal.

jb: Se o “universo benfiquista” estivesse ao corrente desta tua mudança serias certamente catalogado de infiel...
C: Infiel... não. Antes pelo contrário. Sou uma pessoa fiel aos meus valores, aos meus princípios e às minhas convicções. Infiéis são todos aqueles que em tempos viraram as costas ao seu líder... infiéis e traidores.

jb: Se eu me pusesse na pele de um benfiquista (prometo que é só para esta pergunta) diria “não tens vergonha, pá?”. Como reages a isto?
C: Vergonha não… orgulho. E quando me confrontam com isso, apenas respondo: “era um benfiquista doente… agora sou um portista racional. Cresci e tornei-me homem… e tu?” (risos)

jb: Como é que a malta reage quando sabe da mudança?
C: Os portistas dizem-me que ganhei juízo… os benfiquistas lidam mal com a informação. (risos)

jb: Admito conhecer gente que mudou de religião (poucos), partido (alguns) ou mulher (muitos). Agora conhecer alguém que tivesse mudado de clube...
C: Também nunca julguei ser possível acontecer… mas a verdade é que aconteceu. E sei que não sou caso único. Já conheci muitas pessoas que passaram pelo mesmo fenómeno.

jb: Essa treta dos 6 milhões precisa, portanto, de ser recalculada...
C: (risos) Há aliás um documentário chamado “O Êxodo”.

jb: Cordeiro, “Se eu fosse o Jorge Nuno Pinto da Costa...
C: ... pensava já num novo treinador para a próxima época."

jb: “Se eu fosse o Vítor Pereira...
C: ... indemnizava o Porto por ter transformado uma máquina de futebol que era na época passada numa equipa sem fio de jogo, por vezes apática, sem chama."

jb: Para concluir: a malta aqui do Café parece que não anda muito satisfeita com o Vítor Pereira. O que tens tu a dizer do momento atual do nosso FC Porto?
C: Se este FC Porto sem liderança for campeão… para o ano o treinador até pode ser um chimpanzé.

jb: Cordeiro, muito obrigado por este teu testemunho histórico. Fico a dever-te uma imperial.
C: Um fino. Já vai sendo hora de aprenderes a falar português correto...
jb: Uma super bock, vá, e não se fala mais nisso. Grande abraço.
C: Outro.

3 comentários:

  1. Muito bom este testemunho. Prova aos mais céticos que enquanto os rituais maçónicos fazem uns passar da escuridão para a Luz, a iniciação ao portismo leva uns da Luz para a transcendência.

    Também a mim, nos tempos idos da minha infância, tentaram aliciar-me para a "tradição" familiar. Mas já então gostava demais de futebol para me deixar enganar.

    Clap clap jb.

    ResponderEliminar
  2. Vale bem 3 finos e 2 pratos de tremoços. De alto gabarito!

    ResponderEliminar